Quando se pensa nos hits do Carnaval, os maiores sucessos costumam ser músicas do pop, do funk e do axé, sempre brilhando na festa mais popular e democrática do país. Mas quem também segue arrastando multidões para as avenidas são os sambas de enredo, uma tradição centenária que ganha destaque por alguns dias em fevereiro, mas cuja campanha começa bem antes. Desde a escolha do tema até a seleção das composições, passando pelo aguardado álbum de com as faixas de cada escola, essas verdadeiras aulas em forma de música têm muita história para contar. Talvez por isso, sigam resistindo na era do streaming.
Os sambas de enredo são crônicas vivas da história, cultura e identidade do povo brasileiro. Originadas nos primórdios do carnaval carioca, essas poderosas melodias desempenham um papel crucial não apenas na celebração festiva que é o Carnaval, mas também no mercado da música, perpetuando tradições. Isso dificilmente mudará, porém agora as ligas das escolas de samba enfrentam o desafio de manter sua relevância e alcance em um momento em que as mídias tradicionais diminuem seu espaço e as plataformas digitais estimulam a alta competitividade entre os lançamentos. Como, então, seguir renovando o público?
Se a TV não abre suas portas como antigamente, as escolas migram para o YouTube. É o caso da Liga Independente das Escolas de Samba (Liesa), do Rio de Janeiro, que não só lançou o álbum “Sambas de Enredo Rio Carnaval 2024”, como fez um registro audiovisual ao vivo. Ao site Carnavalesco, o vice-presidente da Liesa e presidente da Edimusa (gravadora da Liga), Hélio Motta, detalhou a motivação por trás de um projeto ambicioso assim, realizado no palco da Cidade das Artes, no Rio de Janeiro.
“A ideia partiu com o sucesso do álbum ao vivo de 2023, que teve uma repercussão muito positiva. É o álbum, hoje, de maior sucesso da história da Liesa. Está nas playlists de todos os sambistas, o pessoal continua ouvindo. Tem como a gente mensurar todo o sucesso com os relatórios das plataformas digitais. E com essa concepção, a gente sentiu que, com o sucesso, o sambista quer realmente uma coisa muito de pegada ao vivo, as pessoas tocando juntas. Acho que o álbum de estúdio tira um pouquinho da energia do pessoal tocando junto. A gente achou que reunindo todo mundo em um mesmo ambiente, conseguiria traduzir melhor essa energia do coletivo que o carnaval tem. E porque vir para cá? Porque a gente está entrando na sala de orquestra. É mais um simbolismo. O samba está entrando dentro de uma sala que até ontem era exclusivamente para a aristocracia, agora estamos escutando tamborim, violão de sete cordas, cavaquinho. É mais um ato simbólico”, ele comemorou.
Essa ocupação dos espaços importa porque o samba de enredo sempre acompanhou as lutas sociais e políticas do povo brasileiro, em especial os marginalizados pela escravidão, desigualdade social e apagamento histórico de direitos civis. Não por acaso, esses sambas ecoam as vivências que os trouxeram até aqui.
“Samba-enredo é um gênero de música popular brasileira que se dedica a contar, a partir de uma gente que historicamente foi excluída dos investimentos públicos, a própria história brasileira que muitas vezes os livros didáticos não contam. E além de tudo há essa coisa do referencial identitário geográfico, toda a questão do pertencimento. O samba enredo é um gênero de múltiplas camadas e que sem dúvida alguma incorpora a questão da memória, do registro social, ou seja, de veiculação das mensagens pulsantes que de algum modo conduziram pessoas ao conhecimento e também ao simples fato de ser. A escola de samba revela personagens, revela componentes e partes de um Rio de Janeiro, de um Brasil, que são esquecidas – pelo poder público, esquecidas dos investimentos, que são muito centrados na zona sul. Então a importância é, sem dúvida alguma, enorme. O samba-enredo é um gênero épico, heroico, epopeico e que de algum modo traduz com precisão a história do nosso povo, da nossa gente e dos diferentes contextos do tempo. Ele é um reflexo, sem dúvida alguma, das questões do entorno”, reflete Fabio Fabato, pesquisador e enredista da Mocidade Independente de Padre Miguel.
Contando a história através do samba
Os primeiros passos dos sambas de enredo remontam ao início do século XX, nas raízes do carnaval do Rio de Janeiro. Através das décadas, essas composições evoluíram, incorporando elementos de diversas manifestações culturais, como o samba de roda baiano e as tradições africanas. No entanto, foi somente na década de 1930 que os sambas de enredo foram oficialmente instituídos como parte integrante dos desfiles de escolas de samba.
O pioneirismo de artistas como Ismael Silva e Noel Rosa pavimentou o caminho para o florescimento dos sambas de enredo, que se tornaram o coração pulsante das escolas de samba do Rio de Janeiro e, posteriormente, de todo o país. As letras elaboradas e as melodias irresistíveis, calcadas nas baterias pulsantes, são registros de seu tempo.
O fator mercado
No contexto do music business, os sambas de enredo desempenham um papel hoje muito reduzido, embora mantenham viva a tradição do lançamento anual dos álbuns que compilam as composições das escolas de samba. Esses discos não apenas capturam a essência vibrante do carnaval, mas também se tornam itens de colecionador e fonte de renda para as agremiações.
Os discos contendo os sambas das escolas surgiram oficialmente na década de 1960. O primeiro foi lançado em 1968 pela gravadora DiscNews, marcando o início da prática de registrar para posteridade as músicas dos desfiles. Antes disso, os enredos de carnaval eram divulgados principalmente por meio de rádio e gravações ao vivo durante os desfiles.
Desde então, o lançamento anual dos discos de sambas de enredo tornou-se uma tradição consolidada, acompanhando o crescimento e a evolução do carnaval brasileiro ao longo das décadas. Seu auge artístico e comercial aconteceu nas décadas de 1970 e 1980, a partir de quando as instituições responsáveis pelos desfiles passaram a editar os discos oficiais, inicialmente com dois LPs por ano e, a partir de 1974, com um disco para cada grupo de escolas. Em 1986, a gravadora multinacional RCA começou a disputar a primazia de editar os discos com a Top Tape, e a partir de 1988 dominou o mercado, seguida pela Universal Music na década de 1990 com a substituição progressiva do vinil por CDs.
“É importante que os álbuns sejam lançados até pelo valor documental. É fundamental ter um registro fonográfico oficial da produção de samba-enredo de qualquer Carnaval para servir de objeto de pesquisa no futuro”, salienta o jornalista Mauro Ferreira, um verdadeiro estudioso da música brasileira que sempre repercute em seu blog, no G1, os lançamentos dos sambas carnavalescos anuais.
Otimismo para 2024
O Rio de Janeiro não é o único palco do Carnaval eternizado em disco. As escolas de São Paulo também lançam suas compilações anuais, além de outras capitais, como Vitória, até cidades interioranas, como Tucuruí, na Paraíba – para citar apenas algumas em destaque nas plataformas com seus discos de 2024.
O investimento contínuo em aprimorar as gravações e em buscar levar a energia da avenida para os fones de ouvido segue motivando esses registros, agora completamente migrados para o formato digital. O movimento pode ter demorado, mas atualmente vem com distribuição para todas as plataformas, vídeos no YouTube e até presença no TikTok.
“As escolas titubeiam, vacilam, às vezes são mais faladas, outras vezes menos, mas estão sempre presentes como registro do nosso tempo, registro do nosso povo. Sem dúvida alguma, o samba de enredo também negocia a sua relação de existência: às vezes ele está mais na crista da onda, outras vezes não, e é muito necessário que as escolas dialoguem também com o seu tempo no sentido da veiculação das diferentes mídias e tudo mais. Nos últimos 20 anos, o samba de enredo experimentou um certo divórcio da cidade do Rio de Janeiro, exatamente porque as escolas não se relacionaram direito com as novas mídias e formas de veiculação. Mas creio que a partir de agora, a partir de 2024, nós temos aí um samba viralizado, que é o samba da Mocidade, do caju, um samba que figurou em primeiro lugar nas plataformas de streaming. Então eu creio que o samba, que deu aquela titubeada, mas jamais morreu – afinal de contas, ele agoniza, mas não morre – mas agora ele vai estar surfando grandes ondas e conseguindo uma veiculação muito bacana nos diferentes meios”, Fabato manifesta.
Não é para pouco. Especificamente no caso do álbum carioca, as canções mais ouvidas caminham para um milhão de audições cada, apenas no Spotify. Sinal de que ainda há público com ouvidos abertos para se encantar pelos enredos que vão do fado português à realeza etíope.
O atual momento parece marcar uma transição geracional. Apesar de ocasionais sucessos, é preciso buscar uma constante renovação do gênero para que volte a ressoar com a população em geral, para além das quadras das escolas de samba.
“Agora não dá sequer para comparar com os áureos tempos do gênero nos anos 1970 e 1980. Naquela época, além da qualidade melódica dos sambas ser infinitamente superior, os sambas eram cantados nas ruas, nas casas, caíam literalmente na boca do povo. Hoje, apesar do sucesso relativo do samba do caju da Mocidade neste carnaval, embalado por muito marketing, os sambas são ouvidos somente nos nichos carnavalescos. Passado o Carnaval, quase todos cairão no esquecimento. Claro que há uma outra exceção, como os sambas da Mangueira sobre Bethânia e sobre Marielle (não exatamente sobre ela, mas me fugiu o nome do samba…), que sobreviveram, mas, no geral, o samba-enredo agoniza. Mas não morre…”, salienta Mauro Ferreira.
“O samba de enredo ele é heroico, ele tá aí vivo há quase 100 anos e a gente espera que ele siga contando as glórias, memórias, a saga da nossa gente e dos diferentes tempos”, resume Fabio. Essa saga, por si só, já renderia um belo samba de enredo.