O impacto dos artistas independentes na indústria musical global é cada vez mais crescente
Houve um momento de transição na indústria da música em que um artista do porte de Caetano Veloso se tornar independente virava manchete em 2017. Hoje, notícias como esta não chamam mais tanta atenção. Quando uma banda da proporção do Paramore “sai do armário” como independente, apenas engrossa o coro de uma tendência que vem se delineando há anos.
Embora as gravadoras majors continuem prosperando na era do streaming, é crescente o número de artistas considerados mainstream sem contrato com um grande selo. Ao invés disso, optam por montar suas próprias equipes escolhidas a dedo, mantendo controle total de seu direcionamento criativo e de decisões comerciais. Agora, até mesmo os números sustentam a constatação inevitável: os artistas independentes são responsáveis por uma fatia considerável da renda gerada nas plataformas digitais.
Em 2023, artistas independentes e gravadoras geraram um total de US$4,5 bilhões no Spotify, marcando a primeira vez em que os indies representaram cerca de metade dos US$9 bilhões gerados pela indústria na plataforma. Esse valor supera a receita gerada pela indústria fonográfica em todos os países, exceto nos Estados Unidos, evidenciando um aumento significativo em comparação com os números de 2017. O Spotify agora corresponde a mais de 20% da receita global da indústria, um aumento considerável desde 2017.
Vantagens e desvantagens
Ser independente sempre teve seu lado positivo para os artistas – os mais óbvios sendo o desejo de preservar sua autonomia criativa, evitar a interferência corporativa, manter uma conexão direta com seu público e reter uma parcela maior dos lucros gerados por sua música. Porém, nunca foi tão atraente quanto agora: as ferramentas para distribuição das músicas já estão amplamente difundidas, disponíveis para qualquer músico, cantor ou banda com uma ideia na cabeça e um ISRC na mão.
No entanto, não é tão simples quanto pode parecer. Afinal, ser independente requer uma abordagem empreendedora, onde o artista deve ser responsável por todas as facetas de sua carreira, desde a produção musical até o marketing e a promoção em uma seara cada vez mais lotada de lançamentos. Não raro, na impossibilidade de contratar uma equipe multifacetada, músicos se desdobram em múltiplas funções para abarcar as variadas possibilidades do momento. De cantores, compositores, instrumentistas e produtores musicais, tornam-se produtores culturais, especialistas em mídias sociais, empresários, roadies e um assessores de imprensa – às vezes, no mesmo dia. Tudo faz parte da cultura da precarização das profissões, que atinge uma vasta gama de funções.
O independente, então, vive a dualidade do otimismo atual, porém sem perder de vista os desafios de um mercado que muda com notória velocidade. Para navegar nessas águas incertas, o Music Business Review conversou com artistas que celebram sua independência ao mesmo tempo que se abrem quanto às possibilidades e limitações dessa realidade.
“Para o trabalho ser gravado, lançado, distribuído e divulgado, seja ele um single, EP ou um álbum, é preciso cumprir uma série de tarefas, que são de diferentes competências. E quando esse artista não tem uma estrutura que disponibilize profissionais específicos para desenvolver cada uma delas, ele passa a ser responsável por quase todas as funções, dependendo de parcerias para aquelas que ele não consegue atuar sozinho. A partir disso, alguns começam a adquirir e lapidar determinados conhecimentos e habilidades e a perceber que é possível não depender de uma grande estrutura para poder desenvolver o seu trabalho”, resume Rodrigo Solidade, produtor musical e guitarrista da banda Canto Cego.
Música independente em ascensão
Em 2020, o mundo testemunhou um marco impressionante no número de lançamentos. Mais de 9,5 milhões de faixas foram lançadas por artistas independentes globalmente, um aumento significativo em relação aos anos anteriores. Em comparação, as grandes gravadoras lançaram “apenas” 1,1 milhão de faixas no mesmo período.
Aquele momento foi marcado pela pandemia de Covid-19, gerando um número impressionante de faixas produzidas em casa (sem falar nas lives, das mais simples às superproduções). O que poderia ter se tornado uma tendência isolada acabou por manter o ritmo de lançamentos, com repercussões que podem ser sentidas até hoje. O setor de shows, por exemplo, ainda não se recuperou das perdas de receita e da subsequente disputa de agendas, cachês e custos de logística mais inflacionados que nunca.
No entanto, os artistas independentes demonstraram resiliência e adaptabilidade, encontrando novas maneiras de se conectar com seu público e gerar renda. Apesar da queda nas vendas nos primeiros meses da pandemia, o setor de música gravada se recuperou, marcando o sexto ano consecutivo de crescimento. Em 2022, as vendas mundiais de música aumentaram 9%, atingindo um total de US$ 26,2 bilhões. O mais impressionante é que a maior parte dessa receita foi gerada por artistas independentes.
Hoje, uma parcela considerável desses nomes habita o midstream – a faixa que engloba os artistas populares e reconhecidos o suficiente para se manterem de forma confortável de sua música, porém sem a fama de uma personalidade mainstream, de alcance nacional ou global.
Esse é o caso de Clarice Falcão, uma cantora e compositora que lançou em 2023 seu quarto álbum solo, “Truque”, totalmente realizado por ela, com direito a clipes para todas as faixas. “Manter-me independente permitiu que eu criasse as coisas no meu ritmo e com as mudanças estéticas e criativas que fiz em minha carreira”, ela explica, tendo ido do folk de “Monomania” (2013) à eletrônica de “Tem Conserto” (2019).
Clarice sempre comentou abertamente seus dilemas enquanto única investidora no seu trabalho, desde brincar com ficar endividada após filmar todos os vídeos de seu álbum visual, até admitir que o comercial que fez para o grupo Pão de Açúcar foi o motivo de ter conseguido gravar seu segundo álbum, “Problema Meu” (2016).
Porém, para as bandas a realidade pode ser ainda mais complexa que para os artistas solo. É o que acredita Thito, vocalista da Capim-Limão.
“Acredito que pela distribuição do mercado da música hoje, pra bandas em início de carreira se manter independente é tanto uma escolha quanto uma condição, pois as gravadoras tem buscado no geral mais artistas solo. Mas de qualquer forma, as vantagens de ser independente estão na liberdade pra criar da sua própria forma e no seu próprio tempo, detendo a maior parte dos direitos da sua obra”, ele analisa. A estratégia vem dando certo, já que a Capim-Limão atualmente tem mais de 100 mil ouvintes mensais apenas no Spotify.
O streaming como aliado da música indie
O sucesso do comercial, com o jingle “O que faz você feliz”, parece ter acontecido uma vida atrás – um momento em que ainda assistíamos conteúdos audiovisuais com intervalos publicitários, e não nas plataformas digitais. Mas não é de hoje que o streaming se tornou a forma dominante de consumo de entretenimento. Em 2021, a renda proveniente desses serviços de música digital totalizou impressionantes US$ 25,1 bilhões, marcando um aumento significativo em relação aos anos anteriores. No entanto, o crescimento da receita do Spotify diminuiu em 2022, indicando um subdesempenho da empresa no mercado. Apesar disso, outros players emergentes, como o YouTube Music, estão ganhando terreno rapidamente, demonstrando a diversificação e a competitividade crescente no setor.
Uma tendência significativa que tem sido observada nos últimos anos é a mudança na participação de mercado, com os artistas independentes conquistando uma parcela cada vez maior. Em 2020, o market share dos proprietários independentes de direitos autorais aumentou de 29,7% para 31,1%, um crescimento significativo em comparação com 2018. Essa ascensão reflete não apenas o talento e a inovação dos artistas independentes, mas também uma mudança nas preferências do público e nas dinâmicas da indústria musical.
Claro que nem sempre o status de independente é uma escolha – muitas vezes, é uma consequência de um ecossistema musical com poucos assentos à mesa das grandes gravadoras.
Rodrigo Solidade observou: “A escolha de permanecer independente muitas vezes surge por necessidade, mas ao longo da carreira, torna-se uma opção consciente. A liberdade de decidir os rumos da carreira é uma vantagem inegável para os artistas independentes”, ele destaca.
“Na verdade, eu acho que não existe artista pequeno ou médio, que trabalhe duro para o crescimento de sua carreira e não viva – ou tenha vivido – o dilema de ser ou não ser independente, fazer ou não fazer parte de uma gravadora. Quem não quer ter uma grande estrutura disponível para desenvolver o seu trabalho? Por outro lado, quem não quer ter a liberdade de escolher, sem a interferência de uma mega corporação, o melhor caminho para sua arte e para a sua carreira? Hoje, eu prefiro a liberdade”, Solidade comemora.
Além disso, Letrux, uma figura proeminente na cena da música brasileira, ressaltou: “Não é uma escolha, é um reflexo do mercado atual. Não faço uma música que as grandes gravadoras e selos acham que vai ser ultra popular e rentável, portanto nunca recebi convite ou interesse. E eu acho que faço música pop de alguma maneira, mas se for comparar com o que toca na rádio, percebo que não é bem assim”, analisa.
Porém, os dois lados dessa moeda afetam não apenas a renda direta dos artistas, como também a configuração da vitrine do mercado da música – agora relegada às capinhas de singles e álbuns em dia de lançamento nas plataformas digitais. Como consequência, há uma dificuldade de alcançar grandes públicos, falta de estrutura e estabilidade na carreira.
“A vantagem de ser independente é a liberdade criativa absoluta. Eu escolho e decido com qual som quero brincar. Os desafios são que infelizmente os grandes meios de comunicação ficaram mais engavetados e nichados. Antigamente, tinha muita música boa tocando na rádio e na TV. Agora quem toca ou aparece tem que ter não sei quantos milhões de seguidores. E, como sabemos, nem sempre isso envolve qualidade. Às vezes sim – e que bom. Mas não é uma regra. Infelizmente, minha música não chega a tantos lugares justamente porque é independente”, assume Letrux.
Os números não mentem
- – Renda: Em 2019, artistas independentes receberam US$2.15 bilhões, representando 4,1% da receita musical dos Estados Unidos;
- – Parcela do mercado: Selos independentes representaram 34,6% da música comercializada em 2022;
- – Vendas: Em 2021, selos indie foram responsáveis por 34,2% das compras de discos – em 2019, eram 30,4%;
- – Recordes dos “records”: 39,5% das vendas de vinil foram de labels independentes;
- – Renda sem precedentes: Em 2022, as vendas de música subiram 9%, para US$26.2 bilhões, a maior parte de proprietários independentes de direitos autorais.
O futuro da música independente
A música independente ainda enfrenta desafios, porém um maior controle artístico e comercial não deixa de ser boa notícia para artistas que, até pouco tempo atrás, só tinham duas opções: um contrato com grandes corporações ou correr o risco de não conseguir viver de música.
À medida que as plataformas de streaming seguem se fortalecendo, os artistas também transacionam de suas posições de CPFs para CNPJs, profissionalizando-se enquanto empresas para atender uma demanda crescente de mercado por suas canções – boa parte delas desafiando os padrões da mídia tradicional.
É possível delinear algumas tendências para o artista indie no futuro e que podem ajudar a moldar o cenário nos próximos anos:
1. Crescimento contínuo do streaming:
O streaming continuará a ser a principal forma de consumo de música, o que beneficiará os artistas independentes que podem distribuir suas músicas diretamente nas plataformas digitais.
2. Maior diversidade musical:
A música independente continuará a oferecer uma maior diversidade de estilos e gêneros musicais, atendendo a públicos mais específicos e nichos de mercado.
3. Ferramentas e recursos mais acessíveis:
A tecnologia continuará a democratizar a produção musical, com ferramentas e recursos mais acessíveis para que os artistas independentes possam criar e produzir suas músicas com qualidade profissional.
4. Fortalecimento da comunidade:
A comunidade da música independente continuará a se fortalecer, com mais colaborações entre artistas, selos independentes e outros agentes do mercado. Os festivais seguirão como um player importante nesse cenário.
5. Novas formas de monetização:
Surgem novas formas de monetização para artistas independentes, como assinaturas de conteúdo para os superfãs, venda de produtos digitais, patrocínios e licenciamento de músicas para filmes, séries e publicidade.
6. Conexão direta com o público:
As redes sociais e outras plataformas continuarão a ser ferramentas importantes para os artistas independentes se conectarem diretamente com seus fãs e construírem uma base de seguidores fiel. Os superfãs serão cada vez mais relevantes no aspecto comercial do trabalho.
7. Importância da inteligência artificial:
A inteligência artificial (IA) terá um papel cada vez mais importante na música independente, desde a criação de músicas até a análise de dados e a otimização de campanhas de marketing. Suas implicações éticas seguirão sendo discutidas enquanto essas ferramentas desenvolvem incontáveis capas de singles.
8. Personalização e curadoria:
A experiência musical se tornará cada vez mais personalizada, com plataformas que recomendam músicas aos usuários com base em seus gostos e hábitos de consumo. É a partir daí que os artistas independentes ganham novos ouvintes e conseguem conquistar mais espaço.
9. Transparência e justiça:
A indústria da música está buscando maior transparência e justiça na distribuição de royalties, o que beneficiará os artistas independentes. Cada vez mais serão discutidas questões como a remuneração por número de audição no streaming.
10. Formato físico e merchandising chegam a outro nível:
À medida que os fãs voltam a buscar uma conexão física com a música, a lojinha do show ganha destaque como uma fonte exclusiva de produtos personalizados para colecionadores e de renda para o artista. Selos independentes já possibilitam a produção de vinil e cassete a preços cada vez mais acessíveis.
O futuro da música independente passa, portanto, por uma remuneração justa, pelo apoio incondicional dos fãs e do desenvolvimento de novas vitrines para suas canções. Uma coisa é certa: o público sempre estará disposto a ouvir.